Sombras de Redenção: Somewhere I Belong


No beco escuro explode a violência
Eu tava preparado
Descobri mil maneiras de dizer o teu nome
Com amor, ódio, urgência
Ou como se não fosse nada

O Beco, Paralamas do Sucesso

orctief2Para mim é como se ela sempre estivesse lá.

No bar.

Quando ela entrou a primeira vez, eu estava enchendo a cara com a galera, feito como sempre, bebendo aquela porcaria de cerveja barata de soja, que eles tentam disfarçar o gosto com mijo de cachorro, mas não dá, o gosto de soja sempre aparece no final, pior que mijo de cachorro.

Tudo hoje tem gosto de soja.

Antigamente, não, os mais velhos dizem que era diferente, soja só de vez em quando, mas eles mesmos não lembram do que é que a cerveja tinha gosto. Só sabem que não era de soja.

Mas eu tô mudando de assunto. Eu faço isso o tempo todo, a galera fica zoada, eu mudando de assunto feito um daqueles xamãs de rua trincados na pôrra do totem deles ou sei lá o quê, falando merda sem parar e aí de repente BUM, o cara do lado dele reclamando sem parar do jogo dos Sonics ganha um buraco novo na cara, aberto de dentro pra fora.

Lá vou eu de novo.

Tavam tocando Here She Comes Again, aquela merda do Concrete Dreams que todo mundo acha foda, mas que eu acho que é só mais um mela-cueca depressivo em loop infinito. Mas naquela noite, quando ela entrou no bar, eu achei que era a música mais bonita da minha vida. Porque ela entrou e olhou direto pra mim, como se não tivesse mais ninguém no bar aquela hora e eu fosse melhor de olhar que as cadeiras e mesas. Foi como se ela ficasse aliviada, sei lá. Parece piada, eu valer a pena olhar duas vezes. Ou até uma. Quer dizer, eu sou ork, cara. Quinze anos, adulto, todo feito. Bela merda, se você pensar direito. Não pareço — em quase nada — humano.

Quer dizer… tá, eu sou forte, mais forte que a maior parte dos caras que não são ork nem troll. Mas não sou como o leão de chácara do Chez Gazelle, aquele cara você tem que olhar duas, três vezes pra ver todo, ou pelo menos até ele te olhar feio de volta. Dois metros e sei lá mais o que de altura, e quase o mesmo de largura. Cento e cinquenta quilos? Pelo menos. Só músculo, o cara. Aquele jeitão calado de milico, de meganha, saca? Perigoso.

Não é como eu. Eu sou igual a todo mundo, se todo mundo fosse ork. Mas deixa pra lá.

Ela olhou pra mim do mesmo jeito.

Entrando no bar como se não fosse o lugar mais perigoso do pedaço, caminhando naquele passo tranquilo de quem entra em casa e tranca a porta reforçada e vê que tá tudo no lugar, o alarme tá inteiro e não tem nada faltando. Segurança, sabe? Ela tinha essa coisa. Como se ninguém nem nada ali pudesse fazer mal pra ela. Andava meio dançando, sei lá, meio no passo de uma música que não era a que estava tocando, mas mesmo assim, era música. Dançando uma coisa que só ela ouvia sem parar dentro da cabeça dela e dançando o tempo todo, cada passo. Eu nunca tinha visto nada tão bonito na minha vida, nem em sensorama, nem em BTL, nada. Nada que nem ela.

O que eu tô querendo dizer é que ela não era bonita como gente, como um ser humano – nem como elfo (aqueles cabelos ruivos e dourados por cima do couro negro cheio de cromo e bottons de neon baratos), se você tá achando isso. Ela não era como a gente. Era melhor, muito melhor. Do jeito que eu achava que todo mundo devia ser quando eu era garoto, quando eu tinha um pai.

E isso nem faz muito tempo.

Ela continuou andando na minha direção e eu feito idiota, fiz o mesmo, ouvindo a galera na mesa reclamar, perguntando pra onde eu ia assim de repente, no meio de uma frase, e só pensando ah, pôrra, não deixa eu fazer papel de idiota, de novo, que merda! E eu fiz papel de idiota, claro, mas ela não se importou.

Ela riu da besteira que eu falei e conversamos a noite inteira sentados no balcão, ela derrubando um copo atrás do outro e nunca parecendo ficar chapada, um sorriso atrás do outro e um copo atrás do outro. Eu tentei acompanhar, mas ela estava em outro nível, sei lá – filtro nos rins? Só sei que acordei no meu muquifo no meio da tarde do outro dia, com uma dor de cabeça que era pra ter me matado, que era pra ter matado qualquer um, até o troll que era leão-de-chácara e muito maior e melhor do que eu. Estava nu, suado e com o corpo dolorido; braços e pernas e abdômen e tudo o mais que tem músculo e cansa e não quebra mas cansa pra cacete. Fiquei um tempo estendido no colchão, olhando para o teto coberto de teias de aranha, rachaduras e aquelas fitas luminosas presas só pelos fios que um dia vão despencar e fritar minha cara e eu vou acabar morrendo sem nem acordar. Fiquei pensando que não lembrava nada depois de uma certa dose, que deveria ter chegado em casa como todas as noites, no piloto automático, bêbado e vomitando e com hematomas que eu não lembro onde consegui.

Mas eu não tinha nada dessa vez, nem sangue seco saindo do nariz, da boca e dos ouvidos. Só o corpo cansado, nu e suado e aquele cheiro que flutuava por cima do suor rançoso de álcool e beta-anfetaminas. Aquele cheiro que não era de flores, mas que poderia muito bem ser. Aquele cheiro dela. Escuto um barulho vindo da sala — engraçado que não tem sala, tem um cômodo que deixa de ser sala, cozinha ou banheiro dependendo da posição da divisória de plástico roído e coberto de spray. Podia ser o gato, se eu tivesse gato, ou se gatos cheirassem como as flores do outro lado da vida.

Ela senta no colchão ao meu lado, sua nudez limpa, sem tatuagens nem cicatrizes nem nada e sorri enquanto passa a mão no meu cabelo desgrenhado de um jeito que nem minha mãe faria (se eu tivesse uma mãe). É quando a coisa toda vem, de uma vez só, a noite toda de uma vez só na minha cabeça e por um instante é tão forte, tão extremo, que eu acho que vou estourar uma veia ou sei lá, mas não acontece nada. Eu continuo vivo, com ela ali do meu lado, passando a mão no meu cabelo com um sorriso tão bonito que tem que ser implante.

Ela abaixa a cabeça e me beija e toda aquela sensação parece que piora, até eu entender que não é dor, que não é medo. Que é um alívio que eu nunca senti antes quase me faz chorar; só que o hábito não deixa. E nós nos abraçamos e fazemos a noite anterior parecer um ensaio. Eu fico pensando que minha vida pode até parecer que vai ficar boa, sem tentar me acostumar muito com a ideia. Eu quase acredito nisso. Porque dura muito. Dura semanas.

Tudo parece que dá certo demais enquanto ela tá por perto, enquanto ela tá comigo. Eu posso até esquecer que não tive uma vida antes disso tudo que não fosse feita de brigas e trabalhos de última categoria, de finais de semanas afundando no BTL, na solidão e sentindo que tudo o que você pode fazer é engolir toda a merda que a sua vida virou e que qualquer sonho que você tenha não vale nem o tempo que você dorme para poder sonhar. Porque nada nunca vai ser do jeito que você sonha.

Mas com ela isso não importa. Porque pela primeira vez eu pertenço a alguma coisa. Eu pertenço a essa coisa que não é ela — é isso que nós dois nos tornamos, que nós dois somos juntos enquanto fazemos meu apartamento virar um lar ao invés de um pit-stop de go-gangues. Ela traz a grana pesada — não vou enganar ninguém, nem a mim mesmo, achando que isso tudo mudou tão rápido só porque ela entrou na minha vida. Ela tem grana. Quando eu saio pra trabalhar, eu não sei onde ela consegue o dinheiro. Joygirl? Pode ser. Mas não quero saber, não quero ter ciúme. Só quero que isso não acabe mais.

Porque se acabar, eu vou junto. Às vezes ela me pergunta na madrugada, quando as sirenes e os tiros os canhões anti-tumulto se cansam da vizinhança e tudo que dá pra ouvir são as pessoas do cortiço na frente varrendo os cartuchos vazios da calçada — Por que você vive assim?

Era pra eu aproveitar pra dizer que a voz dela é feito música, mas não é bem assim. É como se ela estivesse acompanhando aquela melodia que parece tocar o tempo todo na cabeça dela, aquela coisa que faz ela dançar pelo dia — bailarina, atleta, ginasta, sei lá.

— Você fala, até parece que dá pra escolher — eu respondo, meio aborrecido, mas não de verdade. Não com ela.

Mas ela sorri sem mostrar os dentes e espera eu responder de verdade. Ela quer que eu fale sobre meu pai.

Quer dizer, ele não é meu pai de verdade. Pra começar, ele é humano. Mas foi a primeira pessoa que olhou pra mim no esgoto onde eu cresci, no pior buraco dos Puyallups, a primeira pessoa que olhou pra mim e não virou os olhos, com nojo, raiva ou medo. Ele se aproximou de mim e disse venha comigo de um jeito que eu não tinha como dizer não, embora não fosse, pensando bem, a coisa mais inteligente pra se fazer. Mas eu só tinha dois anos e nem sabia mais pra que lado ficava a casa com os irmãos e a mãe. Não era meu pai, mas foi a coisa mais parecida que eu conheci.

Ele e os amigos deles. Todos eram humanos, ou quase todos. E todos eram cuidadosos comigo, como se tivessem medo dele, ou tivessem medo de algo que ele pudesse fazer se olhassem pra mim do jeito errado. Mas nenhum deles olhou pra mim de outro jeito que não fosse com um pouco de pena, eu acho. Eu aprendi muita coisa com ele, com meu pai. E com seu amigos. O que eu mais aprendi foi aa sobreviver. Aprendi a lutar, a manter minha palavra, a defender meus amigos. Aprendi a ser um homem. Mesmo sendo um ork. Ele dizia que não fazia diferença, que no fim das contas, somos todos humanos. Eu nem sempre acredito, mas aprendi a sempre dizer isso. Então eu cheguei em casa um dia e ele não estava mais lá. A casa vazia, só um credstick no chão perto da porta — mais nuienes que eu podia gastar num ano. Sem bilhete nem nada. Eu tinha doze anos e já era um homem. Ou um ork.

Foi o pior dia da minha vida, descobrir que eu já era um homem. Mas ela sabia daquilo tudo. Eu já tinha falado daquilo tudo antes, várias vezes, de várias maneiras diferentes. Eu sorri de volta e ela passou a mão no meu braço, querendo dizer que não importava, que aquilo tudo não importava; eu ficava pensando que não importava mais, que bastava ela.

No dia seguinte, eu acordei com uma voz diferente na casa. Foi quando as coisas começaram a mudar.

Ela e uma amiga conversavam na porta, em alguma língua que eu não conhecia. Talvez chinês. A amiga dela parecia chinesa. Ou coreana. Ou tailandesa, eu não sei. Não era japonesa, não tinha aquela arrogância de quem sabe que é melhor do que você, só por ter nascido assim. Era bonita e pequena, feito um brinquedo, como uma daquelas apresentadoras virtuais de SenseTV – AnimeGirl, PixeLass, uma dessas coisas com um símbolo de marca registrada no final. Eu não sabia como ela tinha chegado no bairro sem um rifle de assalto pendurado nas costas, porque tem um mercado negro hoje em dia só pra olhos que nem os dela. Ela me apresentou sem dar nomes. A outra me fez uma reverência, baixando a cabeça quase até a cintura, os braços juntos do lado do corpo. Como se fosse algo muito importante estar ali na minha frente. Eu tentei repetir, mas acho que meu corpo não foi feito pra esse tipo de gentileza e saiu tudo esquisito. Ela não riu, nem torceu o rosto nem nada. Ficou apenas ali, muito séria, me encarando, como se eu fosse Jetblack voltando do túmulo ou coisa parecida. Aí ela se despediu e foi embora.

Naquela noite nós não saímos.

Ao invés disso, ela me abraçou de um jeito como se eu fosse morrer, me beijou e foi embora sem dizer nada, sem levar nada, vestida do mesmo jeito que estava no dia em que nos conhecemos. Eu só pude ficar parado e pensar em como a minha vida era uma merda de novo, e como aquilo só fazia tudo que veio antes parecer pior, muito pior do que ficar sem sonhar — e eu nem sonhava mais antes dela. Aí veio subindo um nó que eu achava que era na garganta, mas era uma coisa maior, que nascia de um buraco sem fundo lá dentro do peito e crescia e parecia que ia estourar, espremendo as lágrimas pra fora, eu só me ouvia rosnando alguma coisa que nem eu entendia enquanto sentia o mundo rodar na minha frente.

Rodando e caindo e quebrando.

A primeira coisa que eu pensei foi em quebrar tudo, em derrubar o apartamento todo com as mãos e pés — eu não sou muito forte, eu não sou muito grande, mas eu posso fazer isso, eu posso quebrar um apartamento inteiro do mesmo jeito que dois caras fortes com marretas. Mas eu não fiz isso. Eu deixei o apartamento em paz e fui brutalizar todos os bares da vizinhança — em especial os que não deixavam mais eu entrar. Não foi bonito, não foi bom pra ninguém mas naquela noite eu não estava bom também, então ficou tudo na mesma pra todo mundo. Em alguns lugares eu pedi, em alguns lugares eu briguei, Mas eu bebi em todos. Em todos.

Eu acho que o dia já estava nascendo quando eu vi que tinha chegado — pela noite de brigas e encontros com a sarjeta e uma neblina vermelha de álcool e estimulantes — no pior lugar da vizinhança. E aqui nos Puyllaps, isso quer dizer muita coisa. Mas era perfeito. A minha vida acabando daquele jeito, na mão de quem eu mais odiava sem nem saber porquê. Go-gangues do caralho. Encostei na esquina que dava de frente pra sede dos caras, um cortiço velho e acabado de primeiro andar onde eles consertavam as motos e davam festas e planejavam as merdas com o bairro todo: Chillers Thrillers. A pior go-gangue da zona, cobrando proteção de todo mundo. Toda semana. Motoqueiros cromados até os ossos, com aquelas tatuagens de fantasmas polinésios cobrindo a pele, viciados em BTL de tortura. Gritei pra o prédio e quem tivesse lá dentro as maiores merdas que eu lembrava e que o álcool deixava dizer. Mas eles não saíram pra me pegar.

Estavam ocupados. Ouvi barulho, não era comigo. Esperei mais um pouco. Era uma festa? Ninguém tinha me ouvido? Cheguei perto da porta, mais suicida que nunca.

Era a maior cena de carnificina que eu já tinha visto; em trídeo, sensorama, na vida real — O cortiço parecia que balançava na minha vista inflamada de bebida e dor, tremendo com o clarão de armas silenciadas que cortavam aquela escuridão traiçoeira da madrugada com munição traçante a mil e quinhentos tiros por minuto. Alguém estava matando os caras do mesmo jeito de quem chuta um cachorro morto: com força e sem remorso.

Fiquei sóbrio de repente, o sangue gelando. Mesmo assim, eu dei mais uns passos pra ver o show. Sobrevivência já tinha deixado de fazer parte do meu estilo de vida desde o começo da noite. Pela porta derrubada, eu podia ver o vão do térreo onde um dia teve uma garagem — coberto de corpos. Acho que quase metade da gangue, sei lá, estavam no chão, no meio de lixo e peças de motos depenadas. Os cartuchos choviam no chão, o bronze cortando uma neblina de pólvora, que era o ar que elas respiravam: a chinesa — agora eu tinha certeza, ela só podia ser chinesa, porque crueldade é um negócio genético — saltava entre as colunas de sustentação e as paredes quebradas, com uma Ingram Neuro em cada mão, dando rajadas curtas com aqueles bracinhos finos que não tremiam nem uma vez enquanto ela cortava os caras na bala de um em um. Era que nem ver um daqueles trídeos velhos de samurais, o mundo passando de câmera lenta pra uns borrões que mal davam pra ver o que tava acontecendo e depois pra câmera lenta de novo. Coisa de dançarino, pelo jeito como ela matava. Parecia que ela tava fazendo um favor pra eles, matando com arte.

A vista ficou turva um instante e eu arriei nos joelhos, sentindo o chão grudento de sangue e óleo e lama, mas não estava nem aí.

Ela estava lá.

Linda, louca e furiosa, correndo pelos destroços do andar de cima, gargalhando enquanto homens com o dobro do tamanho e do peso caíam feito sacos de lixo, morrendo com golpes das mãos nuas, os ossos trançados de titânio e plástico quebrando feito isopor. As mãos com a mesma ternura que fazia amor comigo, com a agilidade de quem tem as juntas girando para todos os lados errados e todos ao mesmo tempo, dançando ao som de algo rápido, pesado e denso e agora eu sabia:

Here She Comes Again.

Tudo terminou muito rápido, também que nem nos filmes. Elas nunca me viram ou nem fizeram nem questão de me ver. Naquela hora eu também não me senti com vontade de me verem. Eu tinha trepado com uma deusa da morte e nossa vida juntos era a mesma que dava à luz membros despedaçados feito plástico barato. A vizinhança me encontrou no mesmo lugar, de joelhos, coberto da cabeça aos pés de borrifos de sangue e sujeira do massacre, pensando que tinha sido obra minha, que eu havia seguido o caminho de meu pai, que — pôrra.

Que eu era um herói.

Mas não tem heróis numa favela.

A noite seguinte, eu passei tentando esquecer do melhor jeito que dava, que era enchendo a cara de novo. Todo mundo fez o possível para me ajudar, achando que eu tava em choque, que eu estava… Sei lá. Mas eu estava só morto por dentro, porque tudo o que eu acreditava e que eu tinha me atrevido a sonhar tinha virado uma piada de merda e de mau gosto.

Depois de três noites o que restou da gangue — fazendo negócios em outro bairro — me encontrou no Matchbox, tentando morrer na boca da garrafa, um gole por vez. Os caras não estavam felizes.

No começo, a dor me deixou feliz. A dor me deixou completo. Eu vi que a minha vida toda tinha sido para esse fim e para esse momento. Mais um ork massacrado em uma briga idiota de bar, por cinco caras com cento e trinta quilos de cromo no corpo. Tudo fazia sentido, tudo estava certo. Eu não tinha nada quebrado ainda. Eles eram cuidadosos e tinham experiência no que faziam. Evitavam os órgãos principais e as artérias, pegando só os lugares onde doía mais. Podia levar uma hora, sei lá, quem sabe mais. Eu sou forte.

Meu pai sempre me disse que eu era forte.

E por algum motivo idiota, aquilo me fez pensar em todo o tempo em que a gente praticava, nas coisas que seus amigos me ensinavam, coisas que um corpo humano — ou o meu, seja lá o que a gente era pra entender quando diz humano — não devia ser capaz de fazer. Como esmurrar ferrocreto, madeira, metal, carne; sem sentir a diferença. Coisas assim. Aquele buraco dentro do meu peito gelou, ficou escuro e perigoso. Não era só por mim. Me pai dizia aquela merda de sempre, éramos todos humanos, e eu pensava que não era bem assim, que não era bem assim, que tinha coisa que faziam diferença, que tinha gente que não ia gostar de mim, pôrra, tinham gente que ia me odiar só porque eu era ork.

E naquele instante, a única coisa que veio na minha cabeça foi se não somos todos humanos, se eu não sou igual a você, por que é que eu tenho que ser menor que você? Aí eu parei de sentir dor.

O primeiro deles, que estava chutando as minhas costelas, foi uma coisa meio descuidada, agora eu sei. Mas as botas com biqueiras de metal dele incomodavam, então eu quebrei a perna do cara na altura em que o fêmur se encontra com o quadril. Algumas coisas você nunca esquece. Basta um movimento rápido, do jeito certo, sem precisar nem de muita força. Mas eu usei muita força. E eu sou forte, muito forte. Os outros deram pra trás quando me viram deitado, segurando uma perna inteira na mão, me encharcando de sangue enquanto seu amigo estrebuchava do meu lado, com um jato de roxo arterial escapando do lugar onde devia ter uma coxa. Levantei do chão, os caras com os olhos presos em mim sem entender. Mas eu entendia tudo.

O resto foi fácil. Não foi bonito.

Mas foi fácil.

***

— Juan.

— Diz.

— O que você vai fazer agora, cara?

— Hein?

— Cê vai começar sua gangue, cara?

Eu baixei os olhos pro chão e pensei bem. O chão do Matchbox tava limpo, o sangue lavado e desinfetado já tinha mais que um dia. O cheiro de morte, de açougue tinha sumido e deixou só o de álcool e anfetaminas de terceira que era a marca registrada do lugar. As coisas estavam mais claras na minha cabeça: gangue não. Gangue era coisa do tempo em que eu era garoto, que correr solto na rua e fazer merda sem saber nem por que, era só o que a gente tinha. Mas eu era um homem agora e tinha que ter sonhos de homem.

E porque meus sonhos sozinhos não iam pra canto nenhum, eu respondi:

— Não. Sem gangue. Só a gente. Só o bairro todo.

E ele foi chamar todo mundo.

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