Millenia: ficção científica à brasileira

WP_20131016_001Enquanto subgênero de FC, Millenia se situa naquele espaço reservado às aventuras de grandes impérios e nações galácticos, onde planetas habitados abundam da mesma forma que cidades em um continente da Terra. Naves viajam em velocidades mais rápidas que a luz, alienígenas convivem com a humanidade através de comércio, guerra, arte e tudo o mais que se poderia esperar de um bom épico de aventura space opera sem muitas dificuldades de compreensão e aceitação pelo público.

Tudo isso contra a dificuldade geral de emplacar um RPG de ficção científica no Brasil, que parece mais receptivo apenas para filmes e livros deste gênero. Mas vamos ao que interessa: lançado pela saudosa GSA Editorial em 1995 (dois anos antes do fechamento da editora), tem como autores Paulo Vicente Alves e Ygor Morais Silva (este último também autor do aclamado e ainda jogado RPG de fantasia Tagmar), contando com 178 páginas em preto e branco e capa colorida.

Senhoras e senhores, vamos à resenha em seu formato tradicional:

A Ambientação

Mil anos no futuro (tomando como base o ano de lançamento, 1995), em 2995, a humanidade vive um novo ápice em sua história, depois de passar por vários apogeus de dominação das estrelas, apenas para ser escravizada por uma espécie alienígena chamada de Fentom, que dominaram não apenas a humanidade, mas inúmeras outras espécies — várias delas agora extintas pelos Fentom — por cerca de quatrocentos anos, tendo sido derrotada apenas por uma guerra civil interna que os enfraqueceu e permitiu que fossem derrotados e exterminados completamente pelos seus antigos escravos. Após libertarem-se dos Fentom, apenas a humanidade, entre as espécies sobreviventes foi capaz de organizar-se com rapidez o sufieciente para formar um enorme governo interestelar (a República), e manter este poder através da força de suas legiões e de sua diplomacia, inspirada nos poucos registros históricos humanos sobreviventes à censura cultural Fentom: o Império Romano.

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alguém conhece?

Apenas nove espécies alienígenas possuem poder político e dispersão pelo espaço habitado para serem mencionadas: Baikans (cangurus humanoides de mundo desértico/exploradores da galáxia/próximos da extinção), Guiratans (cetáceos humanoides de mundo gelado/engenheiros navais), Hasjaris (leões humanoides/guerreiros leais e honrados), Kuihers (ursos humanoides sobrevivencialistas/acadêmicos pacifistas), Luminaris (lêmures humanoides de mundo noturno/mestres de sobrevivência), Makwis (águas-vivas flutuantes gigantes de mundos tóxicos/gênios bizarros), Nícteos (morcegos-coruja humanoides noturnos), Pierbodis (gorilas humanoides acrobáticos/influência política) e Vorgans (lagartos humanoides primitivos/tecnologia absorvida por erro/bárbaros imperialistas do espaço). Entre elas, um dos legados Fentom: a criação de três subespécies humanas, adaptadas para atividades industriais e agriculturais e que sofrem de forte preconceito por parte do resto da humanidade, como uma lembrança do período de escravidão.

O Braço de Órion (uma das expansões da Via Láctea) é o palco do jogo e abriga cinco nações interestelares: a República, lar da humanidade; a Vorgânia Oriônica, império dos Vorgan; a Esfera de Co-Prosperidade, onde um cartel de mega-corporações fundou sua própria distopia industrial nas estrelas; o Ducado de Meltnya, um antigo micro-império humano; e a Liga da Fraternidade Universal, que agrega vários planetas e populações alienígenas de governos independentes unidos por um conselho comum. Entre Elas, a Zona Neutra de Perseu agrega planetas com governos realmente independentes entre si, muitos deles experimentais.

A tecnologia presente no livro permite vôo mais rápido que a luz, antigravidade, armas laser, eletromagnéticas, inteligências artificiais, andróides, trajes de combate (mecha, mas não do tipo gigante), implantes cibernéticos e tudo o mais que se poderia esperar de um RPG space opera. A lista de equipamentos é razoavelmente completa, embora a nomeclatura possa parecer, por vezes, muito específica ou muito genérica (como possuir um nome comercial para cada modelo de carro aéreo, mas os trajes de combate são Armadura de Batalha e Mega Armadura de Batalha).

O Sistema

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sim, a tabela de ataque usa cores (tá, tons de cinza) para diferenciar os resultados.

Mecanicamente, Millenia não é muito complicado para criar personagens e jogar. Ele começa com seis atributos (Força, Reflexo, Saúde, Intuição, Vontade e Presença) que são definidos aleatoriamente, rolando-se 3d6 para três dos atributos e 2d6+6 para os outros três (à escolha). Além disso, você acrescenta mais cinco pontos aos atributos finais, de forma a personalizar o personagem, mas eles não podem elevar nenhum deles acima de 15.

Aí vem as habilidades (aqui chamadas de proficiências), que variam segundo sua profissão (Soldado Terrestre, Soldado do Espaço, Explorador, Mercador do Espaço, Oficial da Lei, Acadêmico, Agente Especial, Profissional Liberal ou Criminoso) e sua escolaridade (Não Especializado, Ensino Técnico ou Superior). Curiosamente, você usa uma “árvore” de habilidades (de maneira muito similar ao FATE, ou talvez ao FUDGE também), começando com uma habilidade de nível 15, duas de nível 13, três de nível 11 e quatro em nível 9. Qualquer outra coisa que tentar será contra nível 7.

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armas, armas e mais armas

Os testes de proficiência são feitos rolando pilhas de dados: 2d6 para tarefas fáceis, 3d6 para tarefas regulares e 4d6 para tarefas difíceis. O valor do teste deve ser menor ou igual ao nível da proficiência. É possível testar Atributos da mesma maneira, em caso de testes que não tenham proficiências claras — como enfiar um pé na porta para abri-la, perceber se alguém está tentado mentir para você, etc.

Regras adicionais mostram detalhes de viagem espaciais, combate (de altíssima mortalidade), uso de tecnologias de invasão de computadores, realidade virtual, drogas e implantes (legais e ilegais). Em particular, eu poderia reclamar um pouco do sistema de combate, com a necessidade de consultar um par de tabelas para verificar o resultado de cada ataque, mas é o bastante dizer que é menos incômodo hoje do que me pareceu há quase vinte anos atrás, quando o usei pela primeira vez.

E ainda assim eu continuaria usando a mesma house rule da época: ignore a coisa toda e use algo que faça sentido para você.

Apresentação

WP_20131016_002Visualmente, Millenia não fica atrás de outros RPGs nacionais da época, embora pareça ligeiramente mal-amanhado, quando comparado com as produções atuais — o que não seria justo. Ele tem uma capa atraente, com ilustração em computação gráfica; ousada para quando foi lançado mas evocando bem o gênero de aventura a que se propõe. O texto em duas colunas é claro e legível, e perde apenas nas más escolhas de tons de cinza pouco atraentes para as muitas tabelas nas regras e listas de equipamento.

A maioria da arte é não apenas adequada, mas extremamente evocativa do gênero, contando com talentos do calibre de Lilith Bettocchi e Mario Alberto Lopes, em excelentes ilustrações de página inteira para o início de cada capítulo. Há ilustrações são de menor qualidade, mas pelo menos são poucas. Ou seja, é um clássico RPG nacional dos anos 90.

No final do livro, encontramos ainda uma lista de filmes, seriados e livros de FC para entrar no universo imaginário de Millenia, que conta também com guias de tecnologia, armas, astronomia e história.

Considerações Finais

Infelizmente, Millenia é um item raro o bastante a ponto de ser quase impossível encontrá-lo hoje em dia, que dirá em bom estado — o meu foi comprado na época de lançamento, mas ainda parece novo. É uma pena que nada mais tenha sido lançado para ele, como aventuras, o esperado módulo de construção de naves e mais detalhes sobre o universo ficcional, como uma expansão detalhando o Ducado de Meltnya.

Sua grande vantagem é ser um cenário interessante e fácil de modificar ao gosto dos jogadores. As regras são simples, em sua maior parte, e embora mecanicamente, alguns tipos de personagem tenham pouca diferenciação entre si, há liberdade o suficiente para criar todo tipo de arquétipo de personagem de space opera. Os equipamentos, armas, veículos e naves espaciais são adequados e variados, com poucas inconsistências, apesar de mostrarem claramente que FC envelhece rápido, e mal. A maior parte dos smartphones modernos, por exemplo, é bem superior aos comunicadores padrão do cenário, que apenas recebem e transmitem áudio.

Se você curte RPGs de ficção científica clássica, como Traveller, 2300 AD, Buck Rogers e Fading Suns — além de outros que só velhotes como eu lembram — Millenia é uma boa opção. O difícil é achar uma cópia, mas boa sorte!

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